a depressão é uma despensa cheia de comida podre

Flávia Schiochet
4 min readAug 5, 2020

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Esse texto foi publicado originalmente no blog Tô Puta e Vou Cozinhar em 2015. Trato depressão e ansiedade há cinco anos com antidepressivos e terapia. Sei que meu uso de medicação será contínuo até o fim dos meus dias e isso não me assusta mais. Em 2015, a aceitação foi agridoce. Compartilho o texto na íntegra, sem alterações:

Você chega em casa — a mesma casa em que morou a vida inteira — e tem um cheiro podre no ar. Você abre a geladeira, os armários, as janelas, queima um incenso. É a primeira vez que você sente esse cheiro. Esse tempo todo você dizia às visitas que elas pisaram em merda de cachorro.

Em agosto, fez um ano que eu senti algo estranho no ar. Antes fosse um pacote de couve-de-bruxelas. Descobrir que era depressão explica muita coisa na existência deste blog: do nome às ausências, o tom dos posts, a falta de vontade que me acomete há anos de continuar com um projeto pessoal que só depende de mim. Eu cozinho quando estou muito agitada, eu como excessivamente quando a tristeza e ansiedade atacam.

limões podres
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O contrário também é verdadeiro em alguns casos: comer qualquer coisa por não conseguir ter paciência para cozinhar e ficar horas sem comer até não aguentar mais e beber água. Dormir. Acordar nova no outro dia, mas com medo de que alguma dessas sensações se repita. Os ciclos são alternados. Ansiedade e desânimo, agitação e paralisia, choro e apatia. Depressão não é apenas incapacidade de sair da cama. É também perder a vontade de fazer algo que te animava antes (fazer um blog, um esporte, estudar uma língua, ir à faculdade, namorar, ver os amigos), é perder a paciência, é ser uma pessoa desanimada, mau-humorada, azeda e ferina. Ninguém gosta de ser assim e muita gente acaba entendendo que este é o seu jeito.

Tratar um transtorno psicológico como parte da personalidade não é algo recomendável de se fazer — e foi o que eu fiz, até desentupir minhas fossas nasais. Ter um hobby que ajude a diminuir a frequência das crises ajuda, mas não por muito tempo. O diagnóstico, depois de aceito, é libertador. É como reorganizar a cozinha e saber onde começou aquele cheiro. Limpe a despensa de vez em quando, nem que pra isso tenha que meter mágoas goela abaixo. Você vai ver que azedas que estão aquelas memórias que você já deveria ter jogado fora. Que aquele ressentimento em estoque não serviu para nada: e ainda estragou o resto.

Se fosse diabetes, eu não teria demorado tanto tempo para falar abertamente. Talvez nem tivesse vergonha: no mesmo dia do diagnóstico tascaria um post reclamando de não poder comer açúcar, faria piadas com insulina. Eu me conheço. Eu vivo falando dos meus triglicérides altos e colesterol bizarramente elevado, por que não escreveria sobre meus outros problemas? Por que esconder uma condição com a qual provavelmente nasci? Se fosse uma doença tratada sem tabu, saberíamos de cor qual a melhor dieta para pessoas depressivas, como lidar com alguém que apresenta sintomas, como ser uma pessoa disponível sem pressionar a melhora imediata de quem tem depressão.

Quando o psicólogo me disse: “Você precisa saber que este é um tratamento solitário”. Ora, “solitário”, pensei: o que pode ser pior do que já senti? Entendo muito de solidão. Sempre me senti sozinha, mesmo acompanhada, mesmo tendo o apoio de todas as pessoas importantes em minha vida. Mesmo sabendo quanta gente me quer bem apesar de todas essas notas a ranço que eu exalo.

Mas a gente, na verdade, só vê a dimensão dessa solitude quando se desprega dela. E aqui, solta dos delírios que a minha cabeça ainda inventa, é tão melhor. Tem sal, mas não é de lágrimas. Tem doce, mas não de indulgência. Tem amargo e azedo também, equilibrados, aparecendo aqui e ali para realçar o que está bom. E o retrogosto deixa de ser alívio por não ter tido um dia ruim e passa a ser tranquilidade e contentamento.

Nada disso seria possível se eu não tivesse dado o braço a torcer e diminuído o ritmo. As primeiras coisas que caem são os prazos auto-impostos, a pressão (interna e externa), o envolvimento com o que não é seu. Do que a sua cabeça é capaz, só você sabe: dizer não e dizer sim precisam resultar em saúde e não em mais ansiedade. A segunda foi perder o medo dos remédios e reconhecer que o que eles fazem é valioso: enquanto o seu cerébro está entupindo toda a extensão das prateleiras com comida estragada, os antidepressivos abrem espaço e metem ali um vaso de alecrim, arranjam uma noz moscada fresca, penduram um ramo de camomila para secar. É um abraço e uma xícara de chá dentro de uma cápsula. Ficar de pé é melhor que tomar porre — e falo por experiência própria.

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Flávia Schiochet

jornalista com pós-graduação em jornalismo literário. mestre em turismo. repórter de gastronomia e comportamento.